luciana ohira e

sergio bonilhA

MÊMORE

“Energia viva, o pensamento desloca, em torno de nós, forças sutis, construindo paisagens ou formas, e criando centros magnéticos ou ondas, com os quais emitimos a nossa atuação ou recebemos a atuação dos outros.” Emmanuel, psicografia de Francisco Cândido Xavier.

 

 

Antes de mais nada, um breve histórico desta antiga chácara onde agora funciona o Gabinete do Desenho. Constituída no final do século XIX pelo missionário presbiteriano norte-americano George Chamberlain participou no processo de fundação da Escola Americana (precursora da atual Universidade Presbiteriana Mackenzie), sendo logo após a morte do Reverendo George adquirida pelo Dr. Lauriston Job Lane, que nela residiu e manteve seu consultório médico até o fim da vida. Nos anos 1940, tomada como interesse público, a chácara foi comprada pela prefeitura de São Paulo, que a desmembrou para estabelecimento da Escola Municipal de Educação Infantil Gabriel Prestes e cedeu em comodato o restante de seu terreno para uso da Universidade Presbiteriana. A casa principal, antes de seu fechamento para restauro em 2008, abrigou instituições várias: Cruz Vermelha Brasileira, Escola de Engenharia do Mackenzie, Arquivo Histórico Municipal e a seção circulante da Biblioteca Mario de Andrade. Nesse mais de um século de existência, a chácara assistiu a grandes alterações na cidade e também modificou-se gradualmente, todavia, mantendo-se mais ou menos inalterada em sua casa principal desde o início dos anos 1900.

“A intervenção dos espíritos no mundo corporal”

O corpo de trabalho apresentado pela dupla Ohira e Bonilha na Chácara Lane é formado por três projetos específicos pensados para o contexto. A convite do Centro Cultural São Paulo, ocuparam desta vez o espaço que não é o da instituição. Não há na escolha um mero acaso, as forças que emanam da própria chácara parecem ter ajudado nesta decisão: os projetos recentes da dupla observam fenômenos espirituais e forças não terrenas.

“O cavalo como receptor e difusor do espírito”

O corpo é matéria. A matéria tem sua densidade diferente do espírito. Já os espíritos habitam os lugares e por motivos diversos se encontram ainda entre nossos pares. Câmeras de circuito fechado são usadas para monitorar os acontecimentos de um local, algumas com HD que guardam horas e horas de programação obsoleta e outras para que exista a multiplicação do olho de um funcionário em mais de um espaço. “c.c.t.v. - central de consulta e tratamento volátil” (em referência ao termo ‘closed circuit television’) é configurado por três câmeras e microfones acoplados a três comedouros que ficam na parte externa da casa. Diferente da função de proteger e controlar, aqui a função é a de aproximar as espécies. Da impossibilidade de conviverem juntas – por instinto de sobrevivência – os pássaros comem de um lado e sua imagem/ação é transmitida a uma outra parte, como uma extensão/afeto, os televisores são como o afago difícil de se conquistar, a aproximação da natureza artificializada pelo meio. Os pássaros têm muito o que falar, mantenham-se atentos para entender as nuances da linguagem.

“É no espírito que está a memória e não no perispírito”

“mêmore” é formado por impressos de livre distribuição contendo transcrição de consulta com a vidente Regina Giovanetti sobre a Chácara Lane e por monitores LCD que são modificados e colocados nas janelas do espaço, busca-se evidenciar diferentes formas da memória enquanto elemento fundamental à criação e/ou perpetuação do presente. A dupla retira a película que torna a imagem visível e a coloca a uma certa distância em um ponto específico de visão – o mesmo ponto onde foi gravada a cena que é exibida em cada monitor: no piso térreo as crianças chegam para a aula na escola infantil vizinha e no piso superior o fluxo de carros sobe e desce a Rua da Consolação, sem contar nas coisas que não são possíveis de serem captadas pela câmera e que possivelmente existem noutros planos. Mesmo que as crianças e motoristas não saibam da existência de uma câmera, seus gestos continuam normativos e seguem um modelo social já instituído. A transcrição da consulta, contendo dados de um universo acessado por meio da vidência, registra aquilo que acontece de modo invisível à maioria de nós; convertida em palavras, a visão da médium produz outras tantas visões na imaginação do(s) leitor(es).

“Um retorno ao corpo”

Em “o camelo e a agulha”, a dupla realiza um sudário da janela lateral da casa, antes fechada e esquecida, agora retorna na qualidade de imagem (um cianótipo emoldurado em escala 1:1). Entretanto, se observamos o conjunto a partir da câmera obscura estrategicamente posicionada no jardim da casa (segunda parte dessa discreta intervenção) temos sensação de ver uma janela de fato, tal como seria no passado, integrada à fachada e até mesmo iluminada. Segundo relata a dupla, ao fazer referência à passagem bíblica presente em Mateus (“pois mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus”) o que se busca é embaralhar o dualismo produzido pela separação entre corpo e alma, daí a combinação das técnicas do fotograma e do ‘pinhole’ (buraco de agulha), da fixação de imagens e da projeção em tempo real na câmara obscura.

Os trabalhos da dupla nesta atual configuração da chácara buscam o externo. Não se contentam em estar apenas dentro, mas circundam a chácara protegendo-a de algo. Estando dentro esperam algo vindo de fora, estando fora esperam algo vindo de outro lugar: da rua, dos vizinhos, dos espíritos e dos céus. A vidente consultada fala de um certo benfeitor invisível a habitar a chácara, segundo diz, o próprio Lane. Se assim for, além de muitas moradas, é possível que haja também muitos moradores na casa de nosso(s) pai(s).

 

Exposição “Mêmore” - Gabinete do Desenho - CCSP - Centro Cultural São Paulo - Brasil / dezembro de 2013