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cristina freire

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Cristina Freire é pesquisadora, docente e curadora do MAC USP. No encontro realizado em março com os participantes do “Máquina de Escrever” Freire comentou sobre as formas utilizadas nas curadorias dentro de um museu universitário, estratégias e formatos usados por artistas conceituais nas décadas de 1960 e 70, condução do MAC USP por Walter Zanini e outras questões que lhe foram lançadas durante a fala.

Pensando no trabalho de Cristina Freire no MAC USP, mais precisamente no acervo de arte conceitual do museu, observo o aparecimento de um tipo de estratégia curatorial associada à conservação de uma coleção. Seu posicionamento se aproxima ao do curador que cuida de um acervo, protegendo os objetos daquela instituição. Além de conservar e catalogar uma parte específica de obras, há também a vontade de torná-lo mais público, através de publicações, exposições e seminários que tratam de obras, artistas e pensamento de uma determinada época. Percebo um caráter afetivo na condução de sua prática como curadora, tanto em relação ao acervo quanto em relação ao ensino, já que mantém um grupo de estudos dentro do museu que congrega alunos da universidade, dinamizando a formação dos participantes.

Há um trabalho de ativar dados históricos. Como exibir os registros de uma época de subtração de direitos civis e manter seu caráter contextual? Talvez isso seja algo paradigmático em nossa recente história. As décadas se passaram e as abordagens de ordem estética e política das obras do período se mantiveram como um potente discurso. A gestão desse acervo, sem dúvida, é um importante legado histórico. “Será um trabalho para toda a sua vida”[1], disse certa vez Zanini para Cristina, logo no início de seu trabalho com o acervo de arte conceitual do museu.

A entrevista que se segue foi realizada por Renan Araujo e gravada por Julia Coelho, as respostas foram endereçadas a Julia, o que modificou o conteúdo dado por Freire. Foram realizadas perguntas específicas, que posteriormente foram subtraídas da parte gráfica, ficando apenas uma resposta que nos conta sobre processos curatoriais, ensino, mercado e Zanini.

Sexta-feira, 11 de outubro de 2013. Horário de almoço. Sala da vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, sede Cidade Universitária. Sem previsão de chuva.

Renan Araujo

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Cristina Freire

A forma como eu concebo curadoria ou como eu venho desenvolvendo, ao longo dessas duas décadas que eu estou aqui no MAC- USP[1], o trabalho de curadoria, ele não se desprende do trabalho da docência e da pesquisa. É mais um dos elementos que fazem o pensamento dinamizar-se a partir de um acervo. Eu comecei a trabalhar com esta coleção conceitual[2] no começo da década de 90, a coleção estava relegada ao esquecimento e comecei a trabalhar pensando inicialmente o porquê ela havia sido esquecida; depois disso vieram os grandes eixos de reflexão ou de trabalho curatorial, se você quiser chamar dessa forma, que estavam colocados ali submersos: livros de artistas, pensar no museu como arquivo, o vídeo…; agora parece que tudo isso está muito em pauta, mas de alguma maneira havia sido esquecido. Então eu começo a pensar o porquê de ter ficado relegado ao esquecimento dentro de uma lógica institucional. Que lógica era essa? Que papel teve o professor Zanini[3] em propor algo que não pôde ser totalmente assimilado por quase três décadas?

Depois desse estudo com a coleção eu fui ouvir, ou tentar ouvir diretamente os artistas, e aí fui criando o trabalho de arquivo paralelo que é o de tentar adensar a compreensão desse material e ao mesmo tempo articular o trabalho do arquivo com a coleção e daí poder fazer esse trânsito, as vezes até criando arquivos paralelos, como no caso das entrevistas que temos feito. Essa é uma prática curatorial que não existiria se não fosse esse material. Essa é a cultura material do museu, quero dizer, são os objetos que estão aqui. Por isso, o termo que a Lucy Lippard colocou na década de 60 “desmaterialização da arte”[4] não se justifica no acervo do museu, porque são coisas, mas são coisas cuja as maneiras de trabalho não podiam ser desenvolvidas dentro de um enquadramento moderno do museu que vinha operando, assim, é necessário pensar a prática curatorial a partir de um acervo. Em nosso caso, é diferente um curador de exposição e um curador de coleção. Curador de coleção é um trabalho de longa duração, é de produção de conhecimento - a exibição é ou não o fator mais importante nesse processo, você pode fazer um livro, você pode montar um seminário, você pode formar pessoas, e isso faz parte do trabalho curatorial com o acervo.

Acho a perspectiva de formação fundamental dentro de um museu e, com isso, abre-se mais uma plataforma. Qual plataforma é essa onde o ensino, a pesquisa e a extroversão estejam completamente entrelaçados? É necessário e urgente abandonar as formas antigas, tanto do trabalho com acervo, quanto do ensino. É isso que de alguma maneira eu venho ensaiando aqui há muitos anos; ensaiando quais são as maneiras de ensinar com as quais eu poderia de fato envolver aqueles que estão interessados em trabalhar, seja em museus, seja com o período específico e seja com coleção. Como seria essa maneira? Vou buscando formas, e agora com a facilidade de haver mais condições com bolsas de pesquisa dadas pelas pró-reitorias(5) isso tem sido mais corrente, mas eu sempre tive estudantes trabalhando comigo, sempre. Isso eu acho que é uma maneira de formar e uma maneira de entender a curadoria dentro dessa chave do ensino.

A segunda maneira, parte do princípio de que nada do que aconteceu está perdido na história, essa é uma perspectiva um pouco historiográfica. Dentro dessa concepção de não reiterar o que já sabemos, mas de buscar aquilo que não conhecemos e não conhecemos dentro de uma história da arte atual, de uma história da arte contemporânea, sem sair com pré julgamentos ou juízos formados em relação a nomes de artistas ou formas de produção - tirar esses preconceitos e sair com a possibilidade investigativa totalmente alerta. Acho que o que tento ensinar é o meu próprio procedimento como uma curadora de um acervo, sobretudo porque é um acervo público e universitário, então não existe nenhuma condição a priori, nenhum interesse, a não ser a produção de conhecimento. Então, se não for aqui, em lugar nenhum pode acontecer. Esse é o meu partido político não partidário, mas de conhecimento e de responsabilidade em relação a uma determinada narrativa, a um determinado valor que vai sendo reiterado incessantemente.

 

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Quando eu faço um projeto fora da universidade eu vejo bem o que vou fazer porque deve haver alguma relação com o que faço no museu. Quando a Lisette Lagnado me chamou para ser cocuradora da 27a Bienal de São Paulo[6]eu fiquei pensando: o que será isso? Qual é a ideia? A ideia na verdade, era que ela queria que eu pudesse levar a minha aproximação de pesquisa e docência acadêmica para um contexto outro. E eu acabei levando um pouco, porque na época… um pouco não, bastante, talvez... Para ter uma ideia de escopo, a gente saiu um pouco da ideia de representações nacionais e fomos visitar ateliês. Na época, eu estava fazendo uma pesquisa com o Leste da Europa. Eu já desenvolvi uma grande parte. Fiz uma pequena exposição aqui no MAC em 2011 – “Redes Alternativas” e em 2009 na Alemanha – “Subversive Practices - Art Under Conditions of Policital Repression 60s-80s”, mas ainda não desenvolvi totalmente a pesquisa em profundidade com todos aqueles artistas, mas é uma coisa que ainda quero fazer. Na época eu estava fazendo isso, o que aconteceu? Quando eu fui para a bienal nós dividimos mais ou menos as regiões do globo onde teríamos interesse de pesquisa para visitar artistas, eu fui para o Leste da Europa e aí o que aconteceu? Eu já tinha artistas na Hungria, já sabia quem procurar e desenvolvi uma relação com críticos dessa época. Muito antes, então, eu já sabia pra onde ir e o que eu queria visitar, e uma coisa foi levantando a outra. Visitei arquivos que eu não conhecia em Budapeste e isso já tinha tudo a ver com relação ao trabalho desenvolvido aqui do museu. Fora isso, levar um pouco essa apreciação de trabalhar muito com documentos, eu acho que com isso, pude contribuir um pouco na bienal; talvez por meio de uma pesquisa com perspectiva mais acadêmica.

 

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Não devemos desprezar o papel do museu como lugar de legitimação, quer dizer, tudo tem suas duas faces. Quando você começa a trabalhar com um artista que nunca ninguém ouviu falar, começa a expor esse artista, escrever textos sobre ele, não textos de pirueta romântica, mas de fundamentação histórica e teórica, obviamente isso agrega um valor econômico e não apenas simbólico. Então agregar valor econômico é saber que você tem responsabilidade. Você pode não atuar diretamente no mercado, coisa que eu não faço obviamente. Eu não vou nem a feiras de arte, eu nem sei o que acontece - nisso eu acho que sou um pouco radical, eu deveria, talvez, pelo menos saber o que está acontecendo -, mas eu não tenho tempo pra isso, porque eu acho que minha urgência é tão grande no que eu tenho que fazer aqui. A tarefa é tão imensa e os trabalhadores são tão poucos nessa direção que eu não preciso ficar engrossando onde está cheio. E outra, principalmente a minha função como professora, docente, pesquisadora - que eu me coloco assim nessa universidade -, então a curadoria faz parte do perfil de atividade docente que se desenvolve no museu.

O mercado abarca qualquer coisa; agora qual é a obrigação? A gente entender aquilo. Entender a distinção entre uma coisa e outra, por isso eu explico muito bem no “Poéticas do Processo” que eu procurei desenvolver um instrumento teórico e metodológico que me ajudasse na prática; então eu operei com a noção de valor de exibição. Por exemplo, se essa foto é idêntica a essa, com qual eu vou trabalhar no acervo? Eu preciso descobrir qual foi exibida, essa outra é a cópia, não é simplesmente a cópia da cópia, é a autenticidade que diz respeito a história agregada e isso você olha pela retina? Não. É a pesquisa que vai te dar isso. A pesquisa deve ir em direção ao próprio trabalho, descobrir aquele artista, em que contexto ele cria, com que grupo ele se entende, como aquilo se justifica em um grupo maior, num estado maior, numa nação maior, num contexto histórico e sócio-político maior… assim por diante você vai criando várias camadas de sentido - é isso que a pesquisa possibilita. O mercado faz isso? Claro que não, porque isso dá muito trabalho e não é imediato, isso é uma formação que demanda muito tempo. Por exemplo, o livro do Zanini que estou organizando “Walter Zanini – escrituras críticas” demorou 5 anos e o livro do Bruscky – “Paulo Bruscky - Arte, Arquivo e Utopia” foram 5 anos e mais 3 esperando para ser publicado. Tudo sem dinheiro, sempre com patrocínio público, nunca ganhando absolutamente nada a priori dentro de um interesse já colocado. A pesquisa, por ter certa pertinência, uma urgência, ela precisa acontecer, ela vai acontecer de uma maneira ou de outra. O trabalho que eu tenho feito, e isso me dá muito trabalho e demanda muito esforço, é o de tornar as coisas públicas, por exemplo, voltando ao “Poéticas do Processo”, este poderia estar restrito aos meus alunos, porque eu estava ensinando isso, mas eu resolvi publicar. Fui atrás de dinheiro, porque daí eu estou falando com que eu não conheço, e isso é tornar público. Acho que a gente tem essa missão também. A mesma coisa com a pesquisa com o Zanini. Eu queria reunir um grupo de textos para poder usar nas minhas aulas e vi que isso não era suficiente. Eu precisava então introduzir melhor, porque a sua geração não sabe direito, tem um “gap” aí. Eu precisava introduzir melhor que figura foi essa, que museu foi aquele, e como eu o conheci? Eu vivi o MAC dos anos 70? Não. Eu conheci esse museu pela pesquisa no acervo. O Zanini também; eu não fui aluna dele. Eu estudei no Instituto de Psicologia, não tinha muito a ver com o que o Zanini estava fazendo ali do lado. Eu tive que encontrar, buscar e procurar,. A pesquisa me levou.

 

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As publicações são mais um desdobramento dessa ação. Para conceber a pesquisa e o ensino interligados você tem que ter material, ter objetos concretos, por isso a gente lê documentos. A pesquisa no acervo precisa gerar uma documentação desse acervo, então são duas necessidades que se encontra e isso pra mim cria mais uma urgência - um programa híbrido, não apenas para curadores escolherem obras para suas exposições, mas para alunos entender cada coisa, para o público em geral, para os meus pares. Tem uma visão de diálogo, é dialógico mais que autônomo.

 

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O Zanini virou uma figura de proa pra mim. Conhecia ele desde o livro “Poéticas do Processo”, mas não tinha muita presença cotidiana. Em 2005, - eu conto isso no livro do Zanini -, em 2005 eu mandei uma carta pra ele dizendo que eu queria fazer uma compilação de textos para usar em aula com os alunos. Eu falo tanto das exposições e não tinha um corpus teórico crítico que pudesse ajudar a ensinar isso. Zanini demorou quase um ano. Um dia me liga, depois dessa carta, no final de 2006 - que podíamos começar a conversar, mas que ele queria reler e reescrever parte dos textos que eu escolhesse -, começamos um contato que foi até o final agora desse ano; muito muito intenso, e acho que ele me ensinou muito no final, sempre ensina, mas ele me ensinou pelos documentos e depois resolveu me ensinar diretamente, ele me ligava quase toda segunda-feira para comentar. Era uma coisa diferente, ele era um pensador, um filósofo; dos poucos filósofos que conheci em vida, ele foi um deles. Quando começou a “revolta no Egito”, eu não estava nem dando ciência daquilo, ele me liga e pergunta: Cristina você viu o que aconteceu no Egito? Preste atenção! Nem tinha começado a Primavera[7], não tinha começado, era só um evento na praça, um evento isolado. Isso quer dizer que ele estava pensando o mundo, pensando o museu, discutindo o museu no Ibirapuera[8], isso tudo foi conversado. É importante frisar essa indissociação do trabalho da curadoria, do ensino e da pesquisa, isso é fundamental, é aí que as coisas se definem.

 

 

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[1] Entrevista concedida por Cristina Freire a Jonas Magnusson. Researching, writing, exhibiting, teaching. The urgency of a critical apparatus.

[2] MAC/USP - Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Seu acervo tem origem na transferência da coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1963 para a universidade. A formação do acervo está associada as coleções de Yolanda e Ciccillo Matarazzo e pelos prêmios das Bienais de São Paulo.

[3] FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo – Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Ilumimuras, 1999. No livro, Cristina Freire relata o acervo de arte conceitual do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, analisa os trabalhos, a importância do acervo e as exposições organizadas nas décadas de 1960 e 70.

[4] Walter Zanini (1925 – 2013) foi diretor do MAC – Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e curador da Bienal de São Paulo em 1981 e 1983. Zanini foi uma importante figura da arte brasileira. Como diretor do MAC nas décadas de 60 e 70 fez com que a instituição se convertesse em um museu experimental, organizando exposições que se tornaram posteriores referências históricas, para citar apenas duas: JAC (Jovem Arte Contemporânea, tendo sido realizada por 7 edições) e Prospectiva-74.

[5] Em referência ao conceito colocado por Lucy Lippard em seu livro “Seis anos: a desmaterialização do objeto artístico de 1966 a 1972”.

[6] As pró-reitorias são os órgãos responsáveis pela direção de uma determinada área de atuação das instituições.

[7] Como viver junto - 27ª Bienal de São Paulo, 2006. Curadoria-geral de Lisette Lagnado e co-curadoria de Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Roca, Rosa Martinez e Jochen Volz.

[8] “Primavera Árabe” é como ficou conhecido os levantes populares surgidos nos países árabes no final de 2010.

[9] Em referência a transferência do MAC USP para uma nova sede localizada no antigo prédio do Detran no Parque do Ibirapuera, São Paulo, Brasil

 

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Entrevistada Cristina Freire / Entrevistador Renan Araujo e Julia Coelho

Publicação final do Projeto Máquina de Escrever

Tutoria Amilcar Packer e Manuela Moscoso

Capacete, São Paulo, dezembro de 2013