bárbara wagner e benjamin de búrca

CINEMA CASINO

“Tá no peito, tá na raça e na cor,

Se tem o molejo no corpo, ô mostre aí pra ver se é bom

Swingueira levada é o groove arrastado, batendo no peito,

Eu sou parango e a moda aqui é cada um do teu jeito

Pra mim, pra você, pra ele, pra ela,

Pra mim, pra você, vamos juntos o som nos leva

Povo festeiro que gosta de festa,

Pra descer, pra quebrar, pra mexer, pra sambar,

Pra mexer, pra quebrar,

Ô solte o corpo todo, deixe o corpo solto,

Ô solte o corpo todo, deixe o corpo solto,

Olha a quebradinha aí, quebradinha,

Vai na quebradinha, vai na quebradinha”(1)

Parangolé. Quebradinha.

Certos ritmos musicais são colocados à margem, identificados como produto de um grupo que não tem valor na sociedade, são considerados de mau gosto e de pobreza cultural. O pagode da Bahia, ritmo que apesar de ter grande força e relevância na região, é estigmatizado pela elite econômica como “música de pobre e de preto”, ainda que seja consumido também por parte dessa elite. Marcado por uma poderosa percussão, o ritmo embala coreografias sexualizadas e é acompanhado por letras que falam de assuntos diversos do ponto de vista do jovem negro e pobre baiano. O corpo ali surge como uma entidade dotada de um poder libertador (embora o pagode baiano apresente também limitações sexistas), desafiando a moral e os bons costumes defendidos pela classe dominante, ele metamorfoseia questões de ordem política e social e evidencia diferenças e questões incômodas àqueles que prezam pela padronização e controle do comportamento.

 

Por outro lado, manifestações culturais tradicionais como o samba de roda, que um dia também sofreu o estigma, hoje é assimilado como algo nobre, de resistência, que deve ser preservado. No entanto, o pagode da Bahia que tem sua origem justamente no samba de roda do Recôncavo Baiano, foi ao longo do tempo sofrendo transformações e se contaminando por outras referências (inclusive aquelas provenientes da indústria de consumo global), e embora seja desprezado por isso, é uma manifestação que garante um espaço identitário a um grupo marginalizado.

 

A legitimação do que é Cultura parece demandar um distanciamento temporal entre o objeto e os detentores do poder de chancela. Talvez quando aquele tipo de manifestação deixar de apresentar riscos à manutenção de uma ordem moral, econômica e social (estando os três intimamente ligados), quando ele virar algo isolado do contexto de seu tempo e venha a tornar-se apenas uma memória, ele ganhe sua qualidade de cultura popular.

 

Hoje, nos vemos diante de uma dinâmica global de trocas, contaminações e imbricamentos em todos os campos, assim o é também no campo da cultura. Há uma definição purista na ideia de cultura popular (sendo este termo também problemático), classificada como algo que é genuíno do povo, a definição parece não alcançar a complexidade dessas manifestações e desconsiderar a nova dinâmica do tempo em que vivemos. Cinéma Casino traz à tona todas essas questões e nos coloca diante da certeza de que a Ilha de Reunião e a Bahia estão separadas apenas por sua geografia.

 

Julia Coelho e Renan Araujo

 

Exposição “Cinéma Casino” - CCSP - Centro Cultural São Paulo - Brasil / 2014 (primeiro texto)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

_______________

(1) CÉSAR, Augusto; LINS, Neto; SANTANA, Léo; XIXINHO. Parangolé. Quebradinha. Álbum Negro Lindo. Universal, 2010

São Paulo, 10 de Dezembro de 2014

 

No último fim de semana aconteceu a segunda edição do torneio K-Pop Dance Tournament nas dependências do Centro Cultural São Paulo. Chegamos atrasados como de costume e perdemos a abertura e algumas apresentações iniciais, o que não prejudicou a apreensão da atmosfera daquele domingo chuvoso. A sala Adoniran Barbosa é dividida por dois pisos, ficamos na parte superior e estrategicamente de frente para os grupos, vista privilegiada para os passos sincronizados. No palco, dançarinos devidamente caracterizados se apresentavam sob olhares atentos e gritos da platéia formada por jovens e alguns pais, do lado de fora da sala, outros tantos se amontoavam em frente aos vidros e disputavam o espaço para ensaiar suas coreografias. Era o grande dia do torneio, todos aqueles que se apresentavam ali já haviam sido selecionados por um júri que avaliou suas performances registradas em vídeo. A premiação era composta por revistas, pôsteres, colares, DVDs, álbuns, camisetas, sessões de fotos, gravações de vídeoclipes e, sem dúvida, o reconhecimento da vitória por seus pares. Espremidos entre as quase novecentas pessoas presentes no evento, tentávamos compreender o que representava aquilo tudo para tais grupos. Uma menina que estava sentada ao nosso lado nos falou um pouco sobre a onda hallyu - algo como uma invasão da cultura da Coréia do Sul em diversas partes do mundo, além do K-Pop, novelas (ou dramas) e filmes integram o conjunto de manifestações cultuadas pelos jovens.

 

K-Pop é uma abreviação de (música) pop coreana, é um gênero originário da Coréia do Sul e que se caracteriza por uma variedade de elementos audiovisuais e comportamentais: dança, música e cultura. O termo pode não soar tão familiar, mas no Centro Cultural São Paulo ele é recorrente. A estrutura do CCSP é usada por jovens para encontros e ensaios das coreografias de seus ídolos que são repetidas ad infinitum diante dos vidros que percorrem boa parte do prédio - mini caixas de som são usadas para a execução das canções, também são utilizados computadores com videoclipes que são repetidos pelos dançarinos em espelhamento.

 

No corredor de acesso à sala Adoniran Barbosa, mesma sala do torneio de K-Pop, Bárbara Wagner e Benjamin de Búrca apresentam o projeto Cinéma Casino na III Mostra do Programa de Exposições 2014. O filme é projetado no vidro da sala que, durante o domingo do torneio, foi engolido pelas circunstâncias. As camadas sobrepostas de imagens - dança, cultura, vidros, música, performers e silhuetas se integraram ao trabalho da dupla. O que era para ser um problema à  projeção, não o é, pelo contrário, o trabalho logra o seu papel ao mimetizar-se com o funcionamento da instituição, não está no espaço apenas tomando o lugar dos dançarinos, mas tentando fazer parte da mesma estrutura. Se no contexto do CCSP e do Ocidente o K-Pop é um corpo introjetado em uma outra cultura, do mesmo modo o estilo e dança advindos da indústria de consumo global se inserem nas danças tradicionais da Ilha de Reunião, como podemos ver em Cinéma Casino.

 

Ao fim do torneio, fomos assistir mais uma vez ao vídeo e notamos que aquele espaço externo agora funcionava sob uma outra dinâmica. Ao invés de escolherem as áreas mais espaçosas do corredor, os performers se concentravam em frente aos vidros onde havia a aplicação de vinil de alumínio feita por Bárbara e Benjamin, tal ação reconfigurou o espaço de dança e de circulação dos que passavam por ali. Se há um deslocamento do trabalho para fora do espaço destinado às exposições do CCSP no momento em que concentra sua atuação em uma área de passagem do prédio, ele também se dá quando os artistas inserem partes do mesmo vídeo nas vinhetas que precedem a exibição dos filmes da programação de cinema do CCSP ou quando propõem, junto à programação de dança da instituição, um encontro/performance com teóricos e dançarinos.

Cinéma Casino assume um formato peculiar, o formato de um trabalho que migra por diversos ambientes dentro do contexto do CCSP na busca por uma interlocução com públicos distintos. Essa migração surge talvez por uma vontade de ver o trabalho se realizando não somente em sua produção mas também em sua exibição, pois a discussão do que é a cultura popular passa, necessariamente, pelas pessoas - e exige necessariamente uma expansão para além do público de artes visuais. Dessa forma,  a leitura do trabalho se distancia de um padrão que dá  previsibilidade ao comportamento do público: este se relaciona de formas diversas sem o peso do “espaço da arte”. Essa leveza se faz presente no vídeo através das falas dos dançarinos que parecem extraídas de uma conversa informal entre eles (artistas e convidados), mas encontra seu contraponto na tensão estabelecida entre a defesa pela cultura tradicional por um grupo e a celebração da cultura pop por outro. O corpo parece dotado de um poder que ultrapassa o da fala e a dança surge como o próprio argumento do discurso, as imagens intercaladas das performances nos dão a sensação de que assistimos a um longo debate - que certamente não se encerrará ao fim do vídeo.

 

Julia Coelho e Renan Araujo

 

Exposição “Cinéma Casino” - CCSP - Centro Cultural São Paulo - Brasil / 2014 (segundo texto)